1.png

© Editora Gato-Bravo 2019


Não é permitida a reprodução total ou parcial deste livro nem o seu registo em sistema informático, transmissão mediante qualquer forma, meio ou suporte, sem autorização prévia e por escrito dos proprietários do registo do
copyright.


editor Marcel Lopes
coordenação editorial Paula Cajaty

revisão e adaptação Carla Cardoso

projeto gráfico Julio Silveira



Título

Grande Mar Oceano

Autor

Leonardo Almeida Filho

Impressão



isbn 978-989-8938-50-3

e-isbn 978-989-8938-51-0


1
a edição: outubro, 2019



gato·bravo
rua de Xabregas 12, lote A, 276-289
1900-440 Lisboa, Portugal
tel. [+351] 308 803 682
editoragatobravo@gmail.com
editoragatobravo.pt

Sumário

Agradecimentos

Lisboa, 1760

Rio de Janeiro, agosto de 1954

Oceano Índico, 1761

Rio de Janeiro, Novembro de 1937

Rio de Janeiro, agosto de 1954

Lisboa, maio de 1778

Rio de Janeiro, Setembro de 1954

Lisboa, junho 1778

Rio de Janeiro, março de 1955

Lisboa, agosto de 1778

Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1971

Grande Mar Oceano, Setembro, 1778

Rio de Janeiro, março de 1940

Grande Mar Oceano, Setembro, 1778

Rio de Janeiro, novembro de 1971

Litoral Brasileiro,
fins de setembro de 1778

Rio de Janeiro, 9 de agosto de 1942

Brasília, 23 de Novembro de 1963

Biblioteca Nacional, março de 1973

São Salvador da Bahia de Todos os Santos, outubro de 1778

Rio de Janeiro, março de 1973

Rio de Janeiro, 1 de novembro de 1778

Rio de Janeiro, março de 1973

Brasília, dezembro de 1971

Rio de Janeiro, junho de 1780

Rio de Janeiro, Novembro de 1973

Rio de Janeiro, 1787

Rio de Janeiro, novembro de 1973

Rio de Janeiro, janeiro de 1788

Rio de Janeiro, novembro de 1973

Rio de Janeiro, maio de 1789

Rio de Janeiro, 10 de agosto de 1942

Rio de Janeiro, agosto de 1790

Rio de Janeiro, janeiro de 1974

Rio de Janeiro, 21 de abril de 1792

Rio de Janeiro, julho de 1950

Rio de Janeiro, janeiro de 1974

Rio de Janeiro, março de 1808

Rio de Janeiro, 21 de março de 1953

Rio de Janeiro, Carnaval de 1974

Rio de Janeiro, Natal de 1953

Rio de Janeiro, novembro de 1814

Rio de Janeiro, Quarta-feira de cinzas, 1974

Rio de Janeiro, setembro de 1976

Rio de Janeiro, maio de 1954

Brasília, agosto de 1976

Rio de Janeiro, setembro de 1976

Rio de Janeiro, agosto de 1954

Brasília, setembro de 1978

Rio de Janeiro, dezembro de 1977

Rio de Janeiro, maio de 1870

Rio de Janeiro, março de 1980

Costa da África, junho de 1810

Agradecimentos

Atravessar esse Grande Mar Oceano não foi uma tarefa solitária. Claro que houve momentos em que a solidão se fez necessária para botar a nau na água. Primeiro nas pesquisas na Biblioteca Nacional e nas leituras intermináveis que me deram material para construir a embarcação e fazê-la flutuar. Depois na tarefa de dar vida às pessoas que pilotaram essas galés e viveram a minha história. Mas uma segunda etapa dessa viagem pediu a participação de algumas pessoas muito importantes, que me ajudaram nessa jornada, com seu apoio, sua crítica, sua leitura, sua paciência e seu amor. A essas almas boas eu agradeço com o coração em festa.

Agradeço a Josélia, Anna, João e Daniel, pela inspiração diária e afetuosa.

Agradeço ao amigo João Mattos pela leitura criteriosa dos originais e pelo olhar de lince na revisão impecável.

Agradeço aos amigos Ronaldo Cagiano e Tiago Ferro pela leitura e crítica generosa do texto.

Agradeço aos editores por comprarem essa ideia.


LAF

Linha severa da longínqua costa –
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.

“Mar portuguez”, Fernando Pessoa


Em tuas ondas precipitadas,
Onde flamejam lampejos ruivos,
Gemem sereias despedaçadas,
Em longos uivos
Multiplicados pelas quebradas.

Mar que arremetes, mas que não cansas,
Mar de blasfêmias e de vinganças,
Como te invejo! Dentro em meu peito
Eu trago um pântano insatisfeito
De corrompidas desesperanças!…

“Mar bravo”, Manuel Bandeira


Meu coração é tão profundo quanto o mar
Tenho cá dentro minhas marés
Nele me afogo, me afago, deixo singrar
No mar do mundo, minhas galés

“Canto de marinheiros do século XVIII”,
Gaspar Sapateiro

Aos meus amores

Lisboa, 1760

Que idade tens, ó pá? Quinze, meu senhor, respondeu, esfregando as mãos suadas nos calções que, muito largos, amplificavam o efeito dos cambitos brancos que o sustentavam. Era puro osso, mas de uma ossatura que prometia vigor físico. Ele tinha olhos de quem sabe onde quer chegar, olhos de tino e desatino. Sabes que o trabalho é muito pesado? Ele assentiu. Tens alguma ideia do inferno que será a tua vida aqui? Ele balançava a cabeça afirmativamente, ansioso, uma nesga de sorriso rasgando nervosamente o canto dos lábios. Não terás folga nem sossego, pensaste nisso? Sim, eu sei, eu quero, meu senhor. Essa obsessão de largar família e rotina já andava a incomodar o pai e a irmã, mas ele insistia: quero o mar, quero o mar. Tu não passas de um graveto e, além disso, quando ao mar, contar com um fracote como tu é muito arriscado, muito perigoso. O capitão coçou as costeletas grisalhas, tinha dúvidas. Tem problema não, meu senhor, ele respondia, excitado, sou forte, apesar de pouca carne, ele mostra o braço ostentando minúsculo bíceps e arrancando sorrisos dos marinheiros e estivadores que assistiam a cena. É isso mesmo que tu queres para a tua vida, miúdo? O capitão resolvera conversar com aquele pirralho que, do cais, há dias pedia atenção e implorava que o deixassem embarcar. Incansável, o fedelho apareceu logo pela manhã quando atracaram no porto, e ofereceu-se para ajudar a descarregar a mercadoria. Foi enxotado pelo pessoal de bordo e pelos fiscais do reino. Passa, menino! Mas ele voltou de novo, e de novo, e de novo. É um miúdo teimoso, disseram. Não tenho família, meu senhor, ele tenta comover o capitão com uma mentira. Meus pais e irmãos morreram no grande terramoto. Há cinco anos vivo nas ruas, de favor. Tenho boa saúde, braços e pernas fortes como só o meu senhor poderá avaliar se me permitir trabalhar para vossa mercê. Posso servi-lo muito bem e juro não comprometer os serviços de vossa embarcação. A nau Nossa Senhora da Conceição estava de partida para Goa com escala em Funchal e Cabo Verde para abastecimento de azeite, vinho, água. Apesar de estar com a tripulação fechada, o capitão sucumbiu à insistência do menino e permitiu que subisse a bordo, determinando que lhe dessem guarida. Ordenou ao contra-mestre que orientasse o pequeno nos trabalhos do navio. Qual o teu nome, filho? Gaspar, senhor, ele respondeu com os olhos cheios de sonhos, Gaspar é o meu nome, filho do finado Pedro Sapateiro e Dona Maria do Pote.

Rio de Janeiro, agosto de 1954

Algumas folhas secas, empurradas pelo vento, envolvem os passos lentos de um homem que caminha solitário pela Avenida Rio Branco neste fim de tarde. “Ela está morrendo”, lamenta, e segue pensativo, observando as lojas que se fecham, as luzes que se acendem nos apartamentos, a praia distante, o pouso de uma aeronave no Santos Dumont. Acendeu um cigarro e ficou observando, de longe, um casal abraçado na Praça Paris, no mesmo banco onde costumava ficar com… desviou o pensamento para algo menos dolorido e concluiu que seria muito bom se a vida fosse assim como chutar uma lata e seguir caminhando, fumando, baforando os males, com o vento no rosto e o silêncio ao redor, mas aquele calor incômodo vem lembrar que a vida real é muito mais que um cigarro fumado e beijos trocados num banco de praça e, para seu desencanto, ela está morrendo. A noite tem cheiro de algas podres e parece sibilar, uma ambulância passou apressada e fez com que, assustado, apertasse o passo, estava muito distante de casa e aquele vento prometia chuva em agosto. A escuridão mostrava-se sobre o perfil montanhoso no horizonte, vinha devagar, monstro imenso mastigando o verde da floresta da Tijuca e os braços abertos do Redentor, que parecia oscilar ante o lusco-fusco das estrelas ao fundo. Veio deslizando sobre a lagoa Rodrigo de Freitas, sobre os prédios do Leblon, de Ipanema, lambendo a espuma do mar no Arpoador, subindo nas pedras, invadindo as ruas de Copacabana, o morro do Leme, a Urca e mergulhando na baía de Guanabara, cobrindo o casal de namorados na Praça Paris, Salvador, seu cigarro e seu coração e sapato apertados. Densas nuvens, muito escuras, denunciavam agora há pouco, quando ainda havia luz, a iminência de chuva forte e no entanto o calor abafa tudo, como se um rio de lava, correndo sob o asfalto, sob a terra, numa fervura de magma plena de pecados e gemidos surdos e suores, no calor de sangue tamoio derramado há séculos, viesse arder nas camas de todas as casas, da Lapa ao Mosteiro de São Bento, entre Eros e Tanatos, entre o gozo e a extrema-unção. Pode-se sentir o pulsar das profundezas nas rochas, latejando com um peito arfando, nas pedras portuguesas das calçadas, no asfalto da Rio Branco, na Pedra do Sal que, a esta hora, deve carregar alguns sambistas em luto batendo o couro de seus tambores. Estranhamente há silêncio, pesado, como um manto cobrindo as ruas da cidade, contrastando com a ruidosa manifestação ocorrida durante grande parte do dia. Já não se escutam os gritos da turba que, pela manhã, vociferava pelo Centro, por bares e becos e vilas e barcas e praças e largos, da Gamboa ao Catete, explodindo em espalhafato e terror. Agora, nem sinal dos populares em revolta que, desordenadamente, ensandecidos, queriam consumir tudo na porrada. A ira, com o passar das horas quentes deste agosto, tornara-se mansidão no ocaso do dia. Nada daquelas almas em combustão ardendo no Castelo, na Glória, na Praça XV e, principalmente, em frente ao edifício Sul-Rio-Grandense, sede da Rádio Globo, onde funcionários e jornalistas, aterrorizados diante da fúria do ataque popular, tiveram que se proteger no último andar e assistiram, apavorados, às pedras que explodiam no belo vitral que havia na fachada do prédio. Lamentava-se no rádio a morte de um homem, ainda não identificado pela polícia, envolvido em conflito no Arco do Teles, mas juram que o motivo do assassinato foi passional, não político. Depositaram algumas flores, acenderam velas e o cobriram com o jornal do dia anunciando outra tragédia. Mesmo a fumaça dos carros queimados durante os distúrbios dissipou-se com o último pedestre na Cinelândia. Pelas ruas, muito lixo, entulho, vidros estilhaçados, restos de cartazes de propaganda e papéis e folhas secas ao vento. Salvador caminha devagar, mãos nos bolsos, pés doloridos. Fumara alguns cigarros, observava as luzes que se acendiam nas casas, passara o dia no leva-e-trás de seu ofício de contínuo no Ministério da Educação. Lembra exatamente o momento em que lera, na primeira página do jornal Última hora, o anúncio do suicídio do presidente Getúlio Vargas. Estampada a manchete: “Matou-se Vargas”. Foi o trágico sinal para que a população do Rio de Janeiro, estupefata, explodisse em fúria e vandalizasse carros da Rádio e do Jornal O Globo, identificados com a crítica implacável ao presidente morto. No Largo da Carioca os conflitos ocorreram entre simpatizantes do presidente, a grande maioria dos passantes, visivelmente enlutados e transtornados, e uns poucos gatos pingados, eleitores da UDN e lacerdistas que se vestiram de coragem – alguns dirão, de loucura - e foram às ruas. Seu olhar registrara as expressões de ódio e os lábios contorcidos de quase feras aos berros de “Viva Getúlio”, “Fora, Lacerda”, “Assassinos, assassinos!” Notou como os homens, em momentos de fúria, perdem tudo aquilo que os torna homens. Vão-se o verniz, a cultura, a educação. Mergulhados no ódio, tudo vai saindo em cada músculo que se enrijece, punho que se ergue, mão fechada que se choca contra outra face tão crispada de ira quanto a do agressor. A barbárie é algo assim, o homem sem o humano ou, de outra maneira, impossível explicar algo como Auschwitz ou Hiroshima, Canudos ou Monte Castelo. Salvador teve medo, era um sujeito de poucas palavras, retraído, uma timidez incômoda. Diriam que era sonso, mas no fundo ele não era mesmo um tipo falante, conversador. Poucos amigos, muitas mulheres, pouca conversa, muitos beijos. Um jeito simplório de encarar a vida, passivo por natureza e com uma certa preguiça quando se tratava de enxergar as coisas da política. Não era de todo um alienado, longe disso, sabia muito bem quem chicoteava e quem era chicoteado. Identificava claramente quem explora e quem é humilhado. Desde pequeno acostumara-se ao silêncio e à disciplina. Trabalhava muito e sem se queixar das tarefas que lhe eram atribuídas, subindo as escadas do Ministério da Educação, de seção em seção. Preferia usar as escadas, gostava de exercitar-se, apesar do cansaço estranho e das palpitações e suores excessivos que lhe causavam esses estirões e que ele atribuía ao consumo exagerado de cigarros. As coisas se acalmaram ao cair da tarde, ao fim do expediente no ministério, e ele resolveu voltar a pé para casa. Precisava pensar. Apesar do receio de que chovesse durante o trajeto, deixou-se seguir pela Avenida Beira Mar, no Flamengo, uma longa caminhada que ele, assumindo o risco de meter-se num temporal, insiste em fazer, maneira de colocar os pensamentos em ordem. O alvoroço da revolta que testemunhou durante o dia encontra eco na tristeza em que está mergulhado há algum tempo. Ela está sofrendo muito, ele pensa e lamenta, e nada se pode fazer. Na calçada, dormindo sobre papelões, dois pivetes encolhidos. O menor deles acorda à passagem de Salvador e lhe pede uns trocados, pra comprar comida, moço. Ele procura nos bolsos algumas moedas que entrega ao garoto. Por trás da sujeira e dos farrapos, aparenta não ter mais do que dez anos. Exatamente a idade que ele mesmo tinha quando a conheceu. Lembra das noites em que, fugindo da violência do pai, alcoolizado, dormia pelas ruas do Catumbi. Recorda o medo, o abandono, o frio. Voltava para casa na manhã seguinte e encontrava a mãe com sinais de espancamento, os irmãos pequenos chorando, famintos, o pai dormindo. Eram tempos de muito sofrimento e desesperança que se resolveram com a morte da mãe, assassinada pelo pai, e o recolhimento dos pequenos aos cuidados da assistência social. Como era o mais velho, acabou numa casa de abrigo para jovens sem família, em Botafogo. Ele lembra quando ela chegou, numa tarde, e lhe ofereceu uma maçã. No canto da sala, sentado, ele viu aquela mulher elegante se aproximar, mas julgara que era apenas mais uma madame como tantas que ele vira chegar no abrigo nos dias de visita, momento em que as crianças alimentavam grande esperança, na maior parte das vezes vã, de conseguirem um lar. Mas não para ele, não para mim, ele cochichava consigo. Ele não. Acostumara-se a ficar só. Qual o seu nome? Salvador. Ele se lembra dos olhos dela brilhando para ele, como que encantada pelo nome que ele acabara de lhe revelar. Salvador? Ela tornou a perguntar, visivelmente emocionada, como se tivesse reencontrado alguém muito querido e que não via há anos. Sim, dona, sou Salvador Monteiro da Silva. Me chamo Isabel, Salvador. Um sorriso doce emoldurado por uma pele muito branca, olhos castanhos. Coma, ela pediu. Não gosta de maçã? Ele, desconfiado, afirmou positivamente com a cabeça. Teve a nítida impressão de que a viu chorar. Ela voltou outras vezes, trazendo biscoitos, doces e, finalmente, um convite, você gostaria de morar comigo, Salvador? Lá se vão mais de vinte anos, ele pensa, enquanto acende outro cigarro e finaliza o percurso da Senador Vergueiro. Já em Botafogo, sobe pela Marquês de Olinda que, a esta hora da noite encontra-se escura e vazia. Anda lentamente, como quem não quer chegar. Ela está muito doente. Seus passos ingressam na Bambina em direção ao número 28 da rua Professor Alfredo Gomes. Uma longa caminhada e muitas lembranças. Não deve passar de hoje, disse o médico com expressão de desânimo e uma certa impaciência revelada na agitação das mãos. Na saída entregou-lhe um receituário. Para as dores, falou baixinho, a voz cheia de fatalismo. Não posso fazer mais nada, me desculpe, agora é esperar. Salvador despediu-se do médico e dirigiu-se ao quarto. Ele estava aguardando fazia um tempão, Salvador, disse Clemência. O doutor ia se embora, mas eu pedi pra esperar aqui, dizendo que o senhor não demorava chegar, mas custou tanto, já andava aperreada, pois não se fala de outra coisa que não a baderna de hoje. Salvador sorriu amarelo para a velha e fez um gesto dizendo que estava tudo bem. Como ela passou o dia? Dormiu um pouco, mas agora voltou a delirar. Às vezes ela grita: “Grande mar oceano”, e se agita toda. Hoje ela falou o nome da dona Lota, mais de uma vez. Não fala coisa com coisa, é de dar dó. Sobre a cama, respirando com certa dificuldade, a velha senhora tenta inutilmente aspirar o ar que cheira a naftalina, demonstrando um sono agitado. Os cabelos muito brancos e ralos parecem raios partindo de um centro agonizante, como se o rosto se desintegrasse em fiapos brancos e secos, numa explosão de cabelos desgrenhados. As rugas pela face desenham uma superfície intransponível que, serpenteando o canto dos olhos, da boca e do nariz, compõem um quadro abstrato em alto relevo. Nos momentos em que tosse, deixa transparecer nos tênues músculos da face a dor que doses cavalares de morfina não conseguem dominar. Os olhos abrem-se por instantes, pálpebras em movimentos involuntários acelerados. Aparentemente nada enxergam ou nada reconhecem, uma vez que pulam de foco para foco. As luzes do quarto foram apagadas e apenas a lâmpada de um abajur estilo Tiffany, à beira da cama, insiste em iluminar, com sua luz fria, o recinto que tem fumos de câmara mortuária. Sobre o criado mudo, um copo e uma jarra com água, algumas caixas de comprimidos, uma bíblia com capa de couro negro, uma imagem de Santo Antônio e uma de Nossa Senhora dos Prazeres. Nas paredes, diversos quadros, paisagens e retratos aprisionados em molduras de gosto duvidoso, decoradas com figuras de animais, plantas, arabescos em alto relevo, cobertos por fina camada de verniz, esmalte ou, como no caso de uma Nossa Senhora de Copacabana, ouro. A impressão que se tem do lugar é a de que são obras de artistas desconhecidos que se foram há décadas. Quadros assinados por viventes do século XIX, exatamente como seus retratados, cobrem o papel de parede estampado, estilo inglês, que já começa a demonstrar sinais do tempo, como alguns pequenos rasgos e partes que se descolam, especialmente junto ao teto e ao rodapé, o que é natural já que as extremidades se mostram mais frágeis e sucumbem mais facilmente à ação de Cronos. Um enorme guarda-roupas de madeira escura assiste, em seu silêncio de jacarandá, à agonia da velha senhora que se retorce sobre a cama. Uma penteadeira, com um grande espelho de cristal decorado, compõe com um móvel de madeira maciça, também escura, e com um gaveteiro decorado em relevo, pernas torneadas, belíssimo exemplar, logo abaixo da janela que dá para a rua, os móveis daquele quarto. Tapetes muito gastos espalham-se pelo ambiente que parece decompor-se lentamente. Um lustre de cristal empoeirado testemunha quando Salvador, despedindo-se de Clemência, pede gentilmente que os deixem a sós por alguns instantes. Arrastou uma pesada cadeira estilo medalhão, colocando-a próximo à cabeceira da cama. Segurou a mão frágil da mulher, investigou mais com afeto do que propriamente com curiosidade a pele recoberta de manchas sobre ossos pequenos. Uns gravetos, ele pensa. Lembra-se daquela mão oferecendo-lhe uma maçã há muitos anos, acariciando os seus cabelos, acenando adeus. Eram mãos macias, de uma brancura leitosa e perfumada, muito diferentes daquelas mãos que agora se dissolviam, cheias de arestas, entre as suas. A calma era quebrada por movimentos involuntários da face e, principalmente, dos pés, que insistiam estranhamente em oscilar para cima e para baixo, constantemente. Às vezes, aquela imobilidade doentia manifestava-se num aperto de mão mais forte, quando aqueles dedos finos e frágeis pareciam absorver um último lampejo de força e apertavam a mão de Salvador, como se estivessem a pedir socorro, exatamente como fazem os afogados nos momentos do desespero que antecedem a tragédia, o fim inexorável. Eram mãos frias, ele tremeu, talvez seja a morte se aproximando. Nesses momentos, ele se desdobrava em cuidados, acariciava a testa, os cabelos, e sussurrava para que tivesse calma: Estou ao seu lado, mãe, estou aqui. Estava muito cansado devido ao longo dia de tumultos e da caminhada que fizera do centro até ali. Culpa dos cigarros, pensou mais uma vez. Ficou em silêncio observando a mãe que agonizava. Era muito triste perceber a devastação causada pela doença e, no caso dela, isso era ainda mais evidente, porque sempre fora uma mulher de estrutura corporal privilegiada, não exatamente obesa, mas braços e pernas bem torneados e “carnudos”, como ela mesma gostava de se descrever entre sorrisos. Uma mulher que, tanto quanto possível, gostava de caminhar pelas ruas do Rio, pelos sebos, antiquários, pelos cinemas na Cinelândia, pelas praias distantes, quando despendia longos minutos fitando o mar, divagando. Observando-a atentamente naqueles últimos momentos de agonia, pensou em registrá-los em desenho, como se desenhar fosse de seu domínio, logo dele, um homem desprovido de talentos. Ela possuía o dom de selecionar bons trabalhos para a loja de Antiguidades que mantinha no Largo de São Francisco. Era conhecida na cidade por conta dessas preciosas peças que garimpava com olhar de velho predador. Quando a doença se manifestou com toda a sua agressividade, ela o incumbiu de zelar pelo velho baú de madeira onde guardava seus escritos, fotos, cacarecos de toda espécie. Pediu a ele que, logo após a sua morte, doasse tudo aquilo para um museu, arquivo público. São coisas de valor, Salvador, não podem se perder, ela lhe disse numa manhã de chuva. Ela conservara em seus anos de maturidade uma beleza que apontava para a juventude. Sim, ele pensava, ela fora muito bela quando jovem. Agora, consumida pela doença, era um molambo sobre a cama, gemendo baixinho. Ele teve a nítida impressão de ouvi-la dizer, com muito esforço, quase um sussurro… o grande mar, o Grande Mar Oceano…

Oceano Índico, 1761

Não há tempo ruim para o trabalho. Há dois dias, quando a Nossa Senhora da Conceição enfrentou ventos fortes e temporal, às costas da África, ondas violentas sacudindo a embarcação e encharcando tudo, o contra-mestre impressionou-se com a força, a disciplina e o destemor daquele mirrado marinheiro. Era de pouca conversa, mas de presença marcante, considerando-se tratar-se de um reles grumete. Ao contrário da grande maioria da tripulação, o jovem sabia ler e se expressar com certa facilidade, coisa que extrapolava o berço, era-lhe natural aquela verborragia direta, sem pelancas. Ao receber ordens, as queria de maneira clara. Se não entendia a demanda, não temia perguntar, pedir esclarecimento. Talvez por isso mesmo, as tarefas que lhe cabiam eram executadas com perfeição. Um grande defeito era a tendência a pegar-se catatônico, olhando o horizonte líquido do mar oceano, a expressão distante, como se visse o fim do mar tenebroso. Nada que comprometesse suas tarefas, mas que chamava a atenção de todos a bordo. Que raios está a pensar esse grumete? perguntava, ao flagrá-lo a barlavento, o capitão ao contra-mestre. Talvez pense no lugar de onde vem o vento, meu capitão. Riram-se. Gaspar pensava em Lúcia, em Pedro Sapateiro e, a contragosto, em Salvador. Tinha saudades de Maria do Pote mas, mais que a saudade, tinha o desejo enorme de abraçar o mundo.

Rio de Janeiro, Novembro de 1937

Meu pequeno Salvador está indo muito bem na escola. E eu que, em momentos, julguei tratar-se de um caso perdido. Deus que me perdoe, mas achei que os anos de maus-tratos e fome teriam provocado um mal irremediável em sua cabecinha. Tenho tendências a ser pessimista diante dos fatos e é por essa razão que celebro sinceramente meus enganos, como nesse caso. O menino emendou-se, finalmente tomou jeito. Compreendo que, no princípio, adaptava-se a uma vida de atenção, carinho, muito afeto, tão distante do abandono em que o encontrei. Carecia tempo e paciência para brotar vigoroso. É outra criança, benza-o Deus! Menos desconfiada, mais acessível. Muito carinhoso, de um jeito só dele. Continua calado, mas creio que isso é da sua natureza. Não é um menino extrovertido, nem posso querer que o seja, se ele não é assim. No grupo escolar, elogiam-no. Fico orgulhosa. Meu filho, meu Salvador. Ontem, Vargas fez discurso anunciando mudanças no país. Tenho cá para mim que nos tornamos agora, irremediavelmente, descaradamente, uma ditadura. No Rádio ele tenta explicar, dourar a pílula. Caiu a máscara do tirano, isso sim. Sua voz irritante soa falsa, vazia, sibilina. Tempos terríveis nos cercam. Essa conversa de que é necessário resgatar a autoridade nacional instaurando um regime forte, de paz, de justiça e de trabalho tem, para mim, um só nome: ditadura. Getúlio nunca me enganou. Aquela cara de gaúcho dos pampas carrega o sangue e a truculência dos caudilhos. Esse negócio de ser pai dos pobres não me convence. Menos mal que os palhaços integralistas se emburacaram de vez nos seus covis. Getúlio, velhaco como ele só, pisou na cabeça da serpente da AIB. Ódio a esse exército de camisas-verdes. Um bando de anencéfalos macaqueando seu líder, a figura asquerosa que é Plínio Salgado. Homem nojento, desprezível. Nesse cenário, é cobra engolindo cobra. Não me iludo, há fazendeiros muito ricos por trás desse Getúlio, desconfio. E não é só porque é Vargas, não. Atrás de todo e qualquer político existe a mão suja da riqueza manipulando, mexendo os pauzinhos. Somos todos marionetes. Eu é que não me deixo enganar mesmo. A força do capital é que move a engrenagem dessa constituição de Getúlio. O Brasil não merece os políticos que tem. Hoje estive na Rua do Ouvidor, fui avaliar uns bens e móveis para aquisição do Antiquário. Lindos e em ótimo estado. Os móveis são do senhor Marçal, que me procurou ontem pela manhã perguntando-me se tinha interesse em comprar umas tralhas. Assim, mesmo, tralhas. Foi como se referiu àquelas maravilhas que mantém em sua casa. É um homem bronco, alma sertaneja, empedrada. Proprietário de uma farmácia que fechou, mora no andar de cima, está de mudança para São Paulo. Depois que a mulher morreu, não tem mais interesse em ficar por aqui. Nunca suportei esse calor infernal, Dona Isabel. Vou-me embora, ele me disse sem nenhum sinal de dúvida. Está vendendo tudo: cama, roupeiro, escrivaninha, cristaleira, mesa, cadeiras, louças, quadros, prataria. Tudo escolhido pela finada, que aliás tinha muito bom gosto. Os móveis são de jacarandá e imbuia, pertenceram aos pais de sua esposa, fazendeiros no interior de São Paulo. Um espelho de cristal trabalhado que é um verdadeiro primor. Não tiveram filhos e ele está só no mundo. Quero morrer entre os meus, ele me disse. Pobre senhor Marçal. Comprei tudo e providenciei o transporte. Fiz um bom negócio. Despedi-me. O trabalho tem-me tomado muito tempo. Sou só, tudo nas minhas costas. Administrar uma empresa, por menor que seja, é uma atividade que requer muito desprendimento, dedicação e, no meu caso, não vou mentir, muito amor. Gosto do meu trabalho, mas lamento muito que, ultimamente, não me tenha sobrado espaço para diversão. Creio que nem sei mais o que é divertimento. Cinema? Há meses não passo na Cinelândia. Faz anos que não vou a Cabo Frio. A última vez que botei os pés naquela areia tinha acabado de adotar Salvador. Brincamos muito. Dou-me ao desfrute de ler, não abro mão dos meus livros. Esse o único prazer que me tem sobrado. Aproveitando o calor, resolvi que tomaria um suco gelado na Colombo, perto dali. Mudei de ideia quando me dei conta que estava na altura do número 110 da Ouvidor. O imóvel ao lado é a José Olympio. Entrei rapidamente e vi um grupo de homens conversando no fundo da livraria. Um deles, um senhor ossudo, com vastas entradas e cara de poucos amigos, esbravejava protestando contra o que insistia em chamar de fascismo tupinambá. Achei curiosa e muito divertida a expressão e deduzi que falavam das mudanças promovidas por Getúlio. Seu interlocutor, eu o conhecia de vista, era o escritor José Lins do Rego. Gordo e sorridente. Cara redonda, cabeça achatada e cheio de sorrisos. Já tinha visto fotos suas no jornal falando de futebol, do Flamengo. Perguntei ao rapaz do balcão, um jovem de bigode fino, camisa branca, gravata, quem eram aqueles homens. Disse-me que eram todos escritores, além do José Lins, um tal de Jorge Amado e o mais velho, com cara de poucos amigos, Graciliano Ramos. Fiquei observando de longe, encantada. Havia lido Caetés e São Bernardo, que julguei maravilhosos. Talentosíssimo aquele escritor, não é? Se não me engano é alagoano. O atendente ofereceu-me um exemplar de Angústia. A senhora vai gostar desse último romance do senhor Graciliano, tenho certeza. O livro foi lançado no ano passado, quando ele estava na prisão, a senhora sabia? Ele me deu a informação como se, de alguma maneira muito sádica, a saboreasse. Chateou-me. Sim, soube que ele esteve preso, mas ser preso num governo de Getúlio é, para mim, um atestado de bons antecedentes. Empolguei-me no discurso, homens em cativeiro de ditaduras são os bons homens. Estar na cadeia de qualquer tirano é uma forma de atestar a decência do presidiário. O rapaz ficou encabulado me olhando com aquela expressão de quem tropeça na própria língua. Será que ele autografaria para mim? Claro, a senhora quer que eu peça para ele? Não, eu mesma vou pedir. Depois de criar coragem, pois, posso não aparentar, sou muito tímida, aproximei-me dos três homens no momento exato em que o senhor Graciliano Ramos acendia um cigarro Selma. Pensei, ele fuma a mesma marca de cigarros que eu, temos algo em comum além de não gostar de Getúlio. Tolice. Apresentei-me e pedi que autografasse o meu exemplar de “Angústia”, um volume de capa azul, aliás muito feia. Ele educadamente perguntou meu nome e escreveu: “Para Dona Isabel, com a esperança de que possamos, um dia, esganar o mal deste mundo sem penas, Rio, novembro de 1937, Graciliano Ramos”. Estranha dedicatória, mas todos os escritores devem ser mesmo muito estranhos. Ninguém atravessa impunemente o mundo da ficção, eu creio.

Rio de Janeiro, agosto de 1954

A

Selaram a sepultura, jogaram algumas flores, tudo em silêncio. Alguns pingos de chuva assustaram os rapazes do antiquário, que saíram correndo, buscando abrigo. Clemência aproximou-se de Salvador com o guarda-chuva aberto. Ficaram olhando demoradamente a sepultura que trazia o nome da avó, Joaquinna dos Santos Marrocos (14/06/1814 – 03/02/1907), que dividiria o sepulcro com a sua mãe, Isabel dos Prazeres (09/08/1880 – 24/08/1954). Clemência rezava baixinho, Salvador era tristeza e silêncio. Trovões ao longe acompanharam quando eles saíram caminhando devagar. Vamos para casa, meu filho, eu lhe faço um café, disse Clemência entre uma Ave-Maria e um Pai-Nosso.